O Bispo Robinson Cavalcanti
ficou famoso na internet por seus textos e opiniões a respeito do cristianismo.
Como de costume, no dia em que veio a falecer havia escrito uma última
publicação chamada “Um caso de milenarismo negro ‘protestante’ no Brasil Império”
e que foi ao ar logo após a sua morte.
O texto foi escrito pelo
Bispo horas antes dele ser morto por seu próprio filho adotivo,
Eduardo Olímpio Cotias Cavalcanti, que com várias facadas assassinou o líder da
Igreja Anglicana de Recife e sua esposa; e em seguida tentou o suicídio.
Eduardo, que confessou o crime e mostrou não estar arrependido,
foi enviado para um presídio após ser liberado pelo hospital.
Em seu último texto,
publicado no blog Pavablog, o Bispo relatou diversos
momentos históricos nacionais que, embora não sejam muito lembrados ou
divulgados, seriam parte importante do estabelecimento do protestantismo no
Brasil. Leia na íntegra abaixo:
Último texto do Bispo
Robinson Cavalcanti
O período do Primeiro
Reinado, Regência e início do Segundo Reinado (‘maioridade’) foi bastante
conturbado por episódios de revoltas regionais e étnicas ou de caráter liberal
e republicano, em destaque, no Nordeste, a Insurreição Pernambucana (1817), a
Confederação do Equador (1824) e a Revolução Praieira (1848).
Desde a Colônia que tivemos
episódios milenaristas/quiliáticos no catolicismo popular, cuja raiz está no
próprio sebastianismo português (o ‘retorno das águas’ de Dom Sebastião, morto
na batalha de Alcácer-Quibir), com pretensos messias e instauração de reinos
celestiais na terra. Fenômeno que continuou na República com o Canudos de
Antônio Conselheiro, e teve até um episódio protestante entre luteranos do sul,
com os Muckers de Jacobina Maurer.
Naquele tempo os negros, em
sua religiosidade, oscilavam entre a assimilação católica de Irmandades, como a
de Nossa Senhora dos Pretos ou São Benedito, e a preservação dos cultos
animistas de fundo africano. O protestantismo de imigração ou as capelanias
britânicas não ameaçavam o sistema, conquanto o próprio Regente Padre Feijó
advogasse para o Brasil um catolicismo reformado nacional, semelhante ao
Anglicanismo. É nesse contexto que o Recife conheceu um movimento único, que
foi o liderado pelo negro livre Antônio José Pereira, a partir de 1841.
Ele fora alfabetizado pela
senhora de sua mãe, uma escrava doméstica, servira na Milícia (força policial
auxiliar), inclusive em outras Províncias do Império, alcançando a patente de
oficial. Sua Bíblia pode ter sido uma edição católica ou uma edição
protestante deixada pelos escassos colportores das Sociedades Bíblicas
estrangeiras que passaram brevemente por Pernambuco naquela época.
Vale lembrar que um pastor
norte-americano havia distribuído 50 Bíblias em 1823 e um colportor havia
deixado um caixote de Bíblias em 1833. Em 1822, com um batismo realizado pelo
Rev. John Penny, foi criada a capelania anglicana do Recife, que inauguraria o
seu templo da Rua da Aurora em 1839. Antônio, ao estudá-la, havia sublinhado
todas as passagens que falavam da intervenção libertadora de Deus em favor dos
oprimidos, e as relacionava com a situação da raça negra, que considerava, no
contexto do Brasil, moralmente superior a dos brancos, maculada pela prática da
escravidão.
Pregou a dignidade da raça
negra, o livre exame da Bíblia por todos os fiéis, inclusive pelas mulheres,
que alfabetizou, e que constituíam a maioria dos seus cerca de 300 seguidores
(mais um número, não preciso, de simpatizantes).
Antônio, que era tratado por
sua comunidade como ‘Divino Mestre’ se considerava um cristão ortodoxo em
relação às doutrinas credais, mais denunciava a Igreja Romana, como desviada e
o padroado (status de religião oficial tendo o Imperador como Grão-Chanceler da
Ordem de Cristo), e atacava a veneração das imagens, centrando a fé em Jesus
Cristo.
O historiador Marcus Carvalho
(CFCH-UFPE), um dos poucos a pesquisar o tema, o considerava um ‘pastor negro’,
e via, em seu movimento, as marcas do Protestantismo. A dimensão milenarista ficava
por conta da crença que a esposa do ‘Divino Metre’ se mantinha grávida por
quatro anos, e que o fruto desse ventre teria uma identidade sagrada, e, quando
do seu nascimento, instauraria um reino messiânico.
O sistema imperial, tenso com
as revoltas regionais, novos quilombos (como o de Catucá), movimentos
milenaristas, a celebração a Independência do Haiti, e a memória da ‘Revolta
dos Malês’ (negros muçulmanos), na Bahia, hierárquica, patriarcal e escravista,
temia e reprimia qualquer movimento autônomo na sociedade civil, especialmente
vindo dos negros, e negros que sabiam ler, e de mulheres, que, fossem negras ou
brancas não tinham status de cidadania.
Tudo isso se constituía em
uma potencial ameaça para a ordem estabelecida. O que não tardou na prisão, em
1846, de Antônio José Pereira, e seis dos seus seguidores. Dada a importância
que atribuíam ao potencial de revolta ou abolicionista da seita, os detidos não
foram ouvidos pelo juiz de paz, ou pelo juiz de direito, mas, diretamente pela
segunda instância formada pelos Desembargadores do Tribunal de Relação da
Província de Pernambuco.
O advogado do ‘Divino
Mestre’, o liberal radical e emancipacionista Borges da Fonseca, editor de um
temido jornal local, que defendeu a sua libertação baseado em que sendo um
movimento pacífico, que, ao pregar o que consideravam ser ‘o verdadeiro
cristianismo’, ou ‘a lei de Jesus’, poderia ser apenas acusado de ‘cismático’,
mas que cisma não era crime pelas leis do império, haja vista a presença dos
imigrantes e das capelanias inglesas.
Os líderes da seita
‘protestante negra’ foram mantidos presos por cerca de um ano, voltando,
depois, a se reunir e a pregar em praça pública, onde a população pobre,
inclusive negra (católica ou do candomblé), instigada pelas autoridades, os
atacava verbal e fisicamente. Em 1851 correu na cidade a notícia de que um dos
seguidores havia morrido e ressuscitado, causando uma polvorosa, e levando as
autoridades a decretar a exibição pública de todos os cadáveres antes dos
enterros…
Com a consolidação do Segundo
Reinado, o sistema se consolidou e se sentiu menos ameaçado, amenizando a
repressão, enquanto ia crescendo o movimento abolicionista. Escasseiam os
registros sobre a seita, sobre a morte de Antônio José, o que aconteceu com a ‘gravidez
de quatro anos’ e porque ela veio a se dissolver e desaparecer.
Como o pensamento ‘anglicano’
do Padre Feijó, e o posterior nacionalismo republicano e abolicionista dos
irmãos maranhenses Vieira Ferreira, que criam a primeira denominação pentecostal
(antes que houvesse pentecostalismo no mundo) entre nós, a Igreja Evangélica
Brasileira, a seita negra pernambucana constitui parte desse
proto-protestantismo (no caso popular) brasileiro, amplamente desconhecido, e
que tem muitas similitudes com o cristianismo nativista africano atual, com
seus milhões de seguidores, também amplamente desconhecido no Ocidente, com
exceção do Kimbanguismo que se filiou ao Conselho Mundial de Igrejas.
Uma grande lição: deixar
pobres e negros lendo a Bíblia por conta própria e sublinhando textos
libertadores… é sempre um perigo…
O Bispo Edward Robinson de
Barros Cavalcanti morreu aos 67 anos e foi enterrado junto a sua esposa,
Miriam Nunes Machado Cotias Cavalcanti, no dia 29 de Fevereiro de 2012.
Fonte: Gospel+
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